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Há exatamente dois anos, em setembro de 2020, fiz o seguinte post em meu Twitter:
“Comecei a ler o ‘aclamado’ livro do CEO da Netflix. Chatésimo. É o tempo todo um tal de ‘otimização’, ‘motivação’, ‘inteligência emocional’, ‘equipe de excelência’, ‘somos o máximo’ etc. Quando a Netflix começar a dar lucro, escrevam outro.”
Eu me referia obviamente ao livro “A Regra é Não Ter Regras - A Netflix e a cultura de reinvenção” (ed. Intrínseca, 348 págs, 2020).
Foi escrito pelo CEO da empresa, Reed Hastings, e a jornalista Erin Meyer.
Embora eu seja naturalmente azedo no Twitter (e fofinho no Instagram, quem quiser pode comprovar), esse post não era apenas mais uma implicância minha, mas conhecimento de causa.
Acontece que, no final dos anos 80, trabalhei como executivo em uma empresa no Rio, cuja filosofia era baseada justamente nesses termos e expressões clichês corporativos: “excelência", “sinergia”, “tomada de decisão”, reengenharia (sinônimo de demissão em massa) e outros termos tontos.
Não consegui ficar nem seis meses na empresa. Parecia um teatro corporativo e de péssima qualidade. Todos de nariz empinado se sentindo gênios da raça.
A cada página do livro de Hastings, mais eu me impressionava (negativamente) com sua megalomania e suas expressões vazias e auto elogiosas.
O mais curioso é que, até aquele momento, a Netflix não havia registrado nem sequer um único trimestre de lucro. Como podia haver tanta soberba?
A empresa vivia na base dos aportes milionários (hoje mais um sinônimo de “dinheiro extra para cobertura de dívidas e investimentos”).
As assinaturas não bancavam nem a infra-estrutura. Ano após ano, trimestre após trimestre, era prejuízo após prejuízo.
O pioneiro e maior serviço de streaming do mundo já via muitos investidores duvidando de seu futuro no médio e longo prazo.
As ações, que já haviam custado mais de R$ 42, haviam despencado para a casa dos 20 e poucos reais (valor convertido do dólar). Depois, até subiriam, mas voltariam a cair a cada nova má notícia contábil.
Hoje, dois anos depois de ter postado minha rabugice sobre o livro de Hastings no Twitter, a ação da Netflix ainda vale o mesmo. E ninguém mais vaticina seu futuro.
Um parênteses: não estou dizendo e jamais disse que a Netflix não é algo revolucionário e que mudou o mercado midiático e o comportamento humano para sempre. É, sim. Ponto.
O que estou dizendo é que, a despeito de sua genialidade, é um serviço cuja conta do balanço não fecha do jeito que foi até hoje: sem publicidade.
Publiquei algo sobre isso em abril, aqui mesmo, nesta coluna no Frisson Online.
http://frissononline.com.br/entretenimento/157035/streaming_e_um_sucesso_mas_nao_fecha_a_conta_por_ricardo_feltrin
Só com assinaturas, o serviço não se banca. Com o adendo: este ano, pela primeira vez, o número de assinantes também está caindo.
Dito isso, o dia de pagar a conta chegou para a dona Netflix e “seu” Reed Hastings.
O mais notável é que, 25 anos atrás, a TV paga já sabia que a publicidade é a “mãe de todos os balanços” (falarei sobre a estúpida “demonização” da publicidade na próxima coluna).
Por que vetar a presença de anunciantes daria certo com o streaming?
Pois bem.
Pressionado por investidores / “aportadores” de recursos, o CEO finalmente admitiu que essa conta não fecha e já começou fazer as mesmas coisas que, em seu livro, se gabava de ter sobrepujado. A saber:
1 - Vai ter plano de assinatura com publicidade, sim. Será mais barato, mas nem tanto;
2 - Aquela moleza de um familiar fazer uma só assinatura e repassar a senha para outros, também chegou ao fim. Quem fizer isso terá de arcar com custos “extras”. Nota: O curioso é que a própria Netflix passou anos incentivando isso.
3 - Já existem planos (fora do Brasil, por enquanto) com qualidade de exibição de menor qualidade.
Até a venda da Netflix para outro conglomerado (como Disney, Paramount, Amazon etc.) já não é mais uma blasfêmia, mas algo realmente ponderado no mundo do deus-mercado.
Hastings mostrou que a genialidade não supera a realidade. E que a modéstia dos vencedores é, no mínimo, uma necessidade.
Na Roma antiga, toda vez que um general voltava de uma guerra, vitorioso, ele tinha direito de desfilar numa biga e ser ovacionado pelo povo nas ruas, até sua chegada ao Senado.
Só que, durante todo o trajeto, um escravo era incumbido de sussurrar aos ouvidos do general: “Lembra-te que tu és mortal”.
Por que um escravo? Como simbolismo: tanto o mais alto como o mais baixo terão o mesmo destino no fim das contas: sete palmos abaixo da terra (ou, para quem preferir, como eu, a cremação).
O “conselho” era uma forma de impedir que o ego do vitorioso (temporário) inflasse como um balão e escapasse do chão e da realidade.
Para Hastings, só faltou a biga e o conselho.
Por Ricardo Feltrin
@feltrinoficial