Selly Chepyego, atleta queniana (Foto: Reprodução)
Quando termina um treino, vez ou outra, aparece uma mensagem para mim perguntando se foi ruim ou se foi bom. Geralmente, é se faz mal ter feito fora do que estava planejado. Nos últimos dias, tenho refletido sobre a qualidade do treino.
Certa vez, assisti a um colega de profissão alertando sobre treinos que não serviram para nada, foram apenas perda de tempo. Lógico que há a necessidade de chamar a atenção. No entanto, penso que a ênfase no treino correto também pode limitar algumas experiências ou mesmo novidades de treinamento.
É interessante até o caso que ele cita sobre aquelas senhoras de idade que saem para fazer sua caminhada matinal e suas adaptações fisiológicas. E é verdade! Depois de 5 ou 10 dias, a mesma caminhada não terá mais o efeito necessário para obter alguma diferença.
O exemplo me remeteu ao meu último ano de faculdade. Uma das disciplinas consistia em monitorar um grupo de senhoras - na verdade, é para homens e mulheres, mas a maioria absoluta era do público feminino, um detalhe para outra conversa de que a atividade física sofre um balanço entre os gêneros e as idades: a medida que a idade avança, o público se inverte do masculino para o feminino.
Dizia eu que uma das disciplinas de estágio consistia em monitorar um grupo de idosos, três vezes na semana. Basicamente a aula tinha um alongamento, alguns exercícios calistênicos para aquecer e, depois, caminhada.
A caminhada até tinha um percurso e a liderança de nossa professora, para que se mantivesse a concentração e um ritmo que desse os efeitos necessários para que a atividade fosse de fato física. A verdade é que víamos pelo caminho algumas que paravam para pegar uma planta, outras que conversavam toda a sorte de assunto possível, algumas mais aceleradas e outras que iam colocando a sua oração em dia na, digamos assim, rabeira do grupo.
Sabe, se fosse nos perguntar qual aspecto ou qual o referencial de que aquela atividade estava lhes proporcionando, acredito que todos sairiam com a resposta sobre o ganho mental, em como aquela atividade melhorou aspectos emocionais, psicológicos e sociais.
Muitas ali ou a grande maioria continuou tendo seus problemas com diabetes, hipertensão, cardíacos. O exercício não funcionou como a pílula mágica da imortalidade, elas não ficaram imunes às lesões ou à osteoporose e ao reumatismo, mas ajudou-lhes a proporcionar amizades e lhes deram momentos que nunca teriam se a caminhada não tivesse na sua rotina.
Dito isso, levo para a parte da qual trabalho. Acabo de assistir um vídeo que gosto muito da NN Team falando sobre a corrida longa. Em um dos trechos, Bekele diz, em outras palavras, de forma simplificada: "estão conectadas, velocidade e longa distância. Se você não fizer treinos de velocidade, apenas longos ou o inverso fazer apenas treinos de alta intensidade sem os longos, você nunca vai conseguir correr bem uma maratona". E ao longo do vídeo - que vou colocar o link no final da postagem -, os atletas e treinadores vão dando as suas receitas, suas fórmulas, de encarar um treino longo de corrida.
Não difere do que vivo no meu trabalho. Muitas vezes, escuto - e eu gosto de escutar - grupos de atletas conversando entre si. A coletânea de perspectivas é tão rica! Aprendemos tanto nessas conversas. Entretanto, em certa ocasiões, percebo a ânsia em querer alterar o que o outro está fazendo. Apesar do pensamento ser nobre, a ideia de modificar um treino não deve se limitar apenas a experiência que você teve ou mesmo o que a ciência nos diz.
Haverá dias que você vai precisar sair do controle. Experimentar ir mais além ou mais forte para entender o que sentirá e como você vai recuperar diante e depois daquele esforço superior ao seu programado.
Quando recebo a mensagem do título da postagem - "meu treino foi ruim?" - a última vez que respondi foi a que considerei mais sensata. Foi mais ou menos assim:
"Sabe, não existe mal feito. O que existe é treino feito e treino não feito. O seu corpo vai se adaptar ao estímulo que você deu. Se você treinou mais forte do que deve ou mais longo do que estava acostumado (um acréscimo superior aos 15% da quilometragem dos seus treinos longos), vai ter um custo. E o custo não será o dia depois, que tem a sensação de esgotamento e cansaço. Pelo contrário, essa sensação é viciante e você vai querer mais! O custo é exatamente esse. A repetição de estímulos acima da sua capacidade, como a demanda por recuperação será maior, você tem que entender que alguma hora deverá desacelerar para que seus músculos, seu metabolismo, seu organismo inteiro consiga se adaptar ao que foi feito e fique verdadeiramente mais forte. Quanto mais forte você for, mais tempo você vai precisar para se recuperar. Então, algo, em algum momento, será modificado para que você consiga alcançar os seus objetivos."
De fato, gosto muito das postagens que aparece no meu feed sobre treinamento. Nelas, a impressão que se dá é de um formato ideal para todos. E realmente acrescenta demais no nosso contexto. Mas devemos conseguir filtrar o que está sendo enviado para nós. Na maioria das vezes, as pessoas não sabem o que estamos passando ou o ambiente que estamos inseridos para treinar ou que nos cerca além do esporte. Algumas pessoas precisam sair do comum, enquanto outras se sentem bem com o controle das cargas. A forma de adaptação entre elas será diferente, ainda que a prova-alvo seja a mesma.
A lição que me marcou no vídeo* citado foi de Selly Chepyego, quando ela diz: "tudo que estamos fazendo no treino é parte do que queremos ser." Ela complementa falando no objetivo, na concentração em manter-se dentro do propósito. Kipchouge também nos ajuda a ensinar quando ele fala que todo treino aqui estamos aprendendo principalmente a sermos humanos.
Os treinos de esportes de endurance se diferem dos treinos de esportes em que os treinadores ou os times estão ali para injentar o ânimo necessário na busca de um resultado, se diferem dos trabalhos na academia que envolvem condições ideais para que o estudo saía o mais preciso sobre a atividade, se diferem também dos treinos que dependem da relação personal-aluno numa sala de musculação, onde até a contagem de repetições é minunciosamente aferida.
Os treinos em endurance vão colocar você em momentos de solitude e questionamentos, colocando dúvidas na sua mente que serão resolvidas e absorvidas basicamente por você, unicamente. É claro que a base construída através das trocas de conhecimento e experiências com seu treinador e seus parceiros será bastante benéfica para dar a confiança em manter, acelerar ou diminuir seu ritmo e volume de treino. Porém, ninguém bate o que você está sentindo. No final, é você quem vai tomar a decisão principal e a resposta para pergunta - foi ruim? - será de sua responsabilidade.
Breno Leal Lima
Treinador de triathlon, corrida, natação e ciclismo
@brenoleallima @br3.treinos
*Vídeo "The long run, an inside view"