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"Jô Soares", por Ricardo Feltrin


Foto: Divulgação

Há duas semanas morreu aos 84 anos o apresentador, ator, humorista, escritor, cenógrafo, pintor, músico e amante dos bichos José Eugênio Soares, o nosso Jô.

Difícil definir o impacto que ele teve em minha vida, tanto pessoal como profissional.

A primeira lembrança de um programa de TV que lembro não é um desenho, mas o humorístico “Família Trapo”, liderado por Ronald Golias (Record). 

Jô Soares era Gordon, o mordomo gordinho.

Eu tinha quatro anos. O programa é tipo o que seria um “Sai de Baixo” décadas depois. Uma família maluca e metida.

Fiquei perdidamente apaixonado pelo Gordon. Depois dele,tudo que Jô fez eu acompanhei, li ou vi. Virou meu primeiro grande ídolo.

No episódio da “Família Trapo” de 10 de novembro de 1967, Pelé participou do episódio. 

Naquela noite (era programa ao vivo), Gordon foi o goleiro bagunceiro da família. 

Pois só por causa disso decidi ser goleiro pelo resto da vida. Sou até hoje, inclusive com algumas medalhas ao longo da carreira amadora (nota do colunista exibido, porém verdadeiro).  

Mais tarde, também graças ao Jô, e a seus personagens, peguei empatia por todas as crianças gordinhas. Virei até um justiceiro no ensino fundamental, arrumando briga com quem fazia bullying com elas.

Vejam só onde chega a influência de uma celebridade na nossa vida, sem que a gente perceba. Só notei tudo isso depois de velho.

O curioso é que só conheci Jô  “pessoalmente” porque publiquei uma notícia errada sobre o programa dele na Globo. Era minha primeira semana como colunista de TV, vindo da fria cobertura policial e de administração pública.

Não lembro exatamente como ou por que, mas de forma presunçosa e errática, dei uma nota de que alguém da produção dele havia se demitido. Não tinha.

Jô puxou minha orelha em rede nacional na mesma noite. Deu meu nome, sobrenome e em seguida ironizou meu erro. 

No dia seguinte, liguei e me desculpei com ele, com a produção, publiquei um erramos no jornal. Também já tomei a primeira bronca do Lino Bocchini, meu primeiro editor de TV.

Para o editor, erros assim podiam “queimar o filme” –tanto meu, como o do jornal. Da boca pra fora concordei com Lino e fiz cara de triste.

Mas, por dentro vibrei: Jô tinha falado o meu nome. Era isso o que importava para o fã, que era mais velho que o jornalista..

Por décadas, o “Programa do Jô” foi o único que me fazia ficar em casa à noite.

Em 2016, quando soube que era seu último ano na Globo, fiquei arrasado. 

Sabia que era o fim de uma era. E da minha “era” como telespectador. Foi a última coisa que que assisti na TV aberta. 

Hoje sei que o “Programa do Jô” foi o primeiro a acabar como “vítima” do tal projeto  “Uma Só Globo”, na prática uma carnificina de empregos em nome da saúde financeira do grupo da família Marinho. 

Depois de Jô,  foram milhares de outros funcionários.

De qualquer forma, senti uma mistura de frustração e irritação em ver uma empresa (Globo), por motivos estranhos, abrir mão do artista mais genial, criativo, engraçado, carismático, inteligente e culto que o Brasil já teve.

Ele não era apenas “acima da média”. Estava milhares de pés de altura acima dela.

Sobrevoou o humor brasileiro por mais de cinco décadas. E o teatro, a literatura e a música (deixou 10 composições registradas no Ecad). 

Em 2 de dezembro de 2010 ele fez sua mais difícil entrevista, como o menino alagoano Arthur Amorim. Era uma criança superdotada; e sabia absolutamente tudo sobre dinossauros.

Inesquecível a cara embasbacada do apresentador quando deu ao menino um dinossauro de plástico e perguntou qual era o nome dele. Arthur nem hesitou: 

“Esse quem inventou foi a loja. Essa espécie não existiu”.

Arthur tinha dois destinos imutáveis: 1) ser um gênio; 2) sofrer um raro tumor que acabou o matando em 2011, aos 10 anos. O tumor (estranhamente classificado como “benigno”) deformou completamente seu rosto.

Jô fez questão de entrevistá-lo, e foi a primeira vez que eu não ri, mas chorei de soluçar vendo um programa dele.

O carinho que teve na entrevista com o menino é algo que nunca veremos na TV. 

Dei uma notinha sobre essa entrevista na Folha.com, à época, e dias depois recebi uma ligação do Jô.

Extremamente emocionado, com voz embargada, agradeceu o que publiquei, porque ele próprio achava que tinha sido péssimo. Disse que a nota foi o presente de Natal daquele ano.

Tive a sorte de publicar, em minha coluna no UOL, uma carta aberta de amor a ele em 2016, como uma despedida de um fã que o seguiu, assistiu e amou por 50 anos. 

No mesmo dia ele já ligou, mas dessa vez chorando mesmo. Eu também chorei.

No ano seguinte, em 2017, ele retribuiu o “presente de Natal” de uma forma que eu jamaisp  poderia sonhar.

Quando ele foi ao SBT receber, pela primeira vez, os seis “Troféus Imprensas” que acumulou na carreira, ao final de uma longa homenagem de Silvio Santos, Jô pediu a palavra.

Começou agradecendo a todos os jurados (entre os quais eu estava).

Antes de terminar, porém, fez uma declaração totalmente inesperada: disse que me amava, tanto quanto eu a ele. 

Baixei a cabeça arrepiado e com os olhos já marejados. Já pensei que seria flagrado ali mesmo soluçando em rede nacional. 

Eu sabia que ele tinha, naquele momento, de uma certa forma incrível, me ligado para sempre a sua biografia. E dessa vez, sem nenhuma bronca, mas da forma mais amorosa que alguém poderia fazer.

Jô foi o último de sua espécie. Não deixa herdeiros. Deixa só uma obra e uma história que todos os nossos descendentes conhecerão. 

Eu tive a sorte de conhecê-lo e de amá-lo. 

Recebi de volta o maior presente que jamais poderia imaginar.

Por Ricardo Feltrin
@feltrinoficial


 

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