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"Streaming é um sucesso, mas não 'fecha a conta'", por Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin é jornalista, colunista e apresentador, tendo trabalhado por 21 anos no Grupo Folha como repórter, editor e secretário de Redação, entre outros cargos

Foto: Divulgação/FreePick

Na última década assistimos a dois fenômenos na mídia, só que seguindo em direções opostas. 

De um lado, a TV paga, objeto de desejo das famílias nos anos 90, sucesso nos anos 2000, mas que vive uma debandada de assinantes desde 2014.

Do outro lado, um “fenômeno” chamado streaming.

Hoje, só a Netflix tem quase 20 milhões de assinantes brasileiros, contra uns 15 milhões de usuários (legalizados) da TV paga. 

Os números do Globoplay –maior serviço brasileiro de streaming– até hoje são um tanto nebulosos. Chega-se a especular que tenha 20 milhões de usuários, mas existe uma diferença fundamental entre usuário e “pagante”, certo? Há muita coisa gratuita no serviço. 

Se o volume de pagantes chegar a 10 milhões já seria motivo de fogos de artifício, champanhe e acepipes na sede da Globo, no Rio..

Se somarmos todos os serviços de streaming (pagos) presentes no Brasil, não é absurdo estimar que os pagantes dessa mais recente tecnologia já tenham passado há muito dos 30 ou 35 milhões.

Só tem um probleminha…

Bem, probleminha, não. Problemaço. 

Apesar de inovador, prático, variável, e mais em conta que o valor das mensalidades da TV paga, nenhuma empresa do mundo até o momento conseguiu transformar o streaming em um modelo de negócio lucrativo, tampouco estimar ou projetar o que será dele no futuro.

Saibam as leitoras e leitores do Frisson Online que, até mesmo a gigantesca Netflix, levou quase 10 anos para registrar pela primeira vez um balanço positivo.

A empresa que começou lá atrás nos EUA alugando DVDs pelo correio, se tornou gigantesca e hoje tem quase 215 milhões de assinantes no mundo.

Foi quase uma década ininterrupta de gastos “estupidilionários” em produções próprias, aquisições de conteúdo alheio, custos operacionais imensos e uma imensa sanha por “aportes” financeiros por parte de seus investidores, antes que o primeiro resultado positivo aparecesse, cerca de dois anos atrás.

Mas só isso não basta, como todo pequeno, médio e grande empresário cearense e brasileiro sabe muito bem: não basta só uma empresa ter lucro. Não. Cedo ou tarde o negócio tem de pagar a si mesmo, “devolver” ao dono tudo que foi investido nele.

Todo mundo no vermelho

Amazon Prime, Disney+, HBO PLus, Discovery+ etc… Não há uma viv´alma corporativa nesse mundo do streaming que não esteja no mais completo “vermelho” contábil. 

Pior: ninguém pode saber ou afirmar se e quando isso será diferente. Como saber?

E o Globoplay?

Bem, o Globoplay é outro caso paradoxal: seu próprietário, o Grupo Globo, já investiu centenas de milhões de reais na plataforma nos últimos anos, e até o momento não viu a cor do dinheiro.

Não há nenhuma expectativa de que esse “ralo” vá ser concretado tããão cedo.

Embora o grupo não especifique cifras somente desse setor, rumores no mercado dão conta que o Globoplay possa estar dando prejuízo anual de mais de R$ 300 milhões. 

E também que não há nenhuma luz no fim do túnel do balanço que mostre se um dia esse lucro chegará.

Muita gente pode até pensar: “Ah, mas a Globo tem um acervo  imenso, Feltrin!”

Sim, mas não tão grande quanto você pensa.

Notem que o canal pago de reprises da Globo, o Viva, exibe pouquíssimas produções antes de 1998.

Isso ocorre porque somente naquele ano a emissora/grupo percebeu que os novos contratos com artistas, autores, roteiristas e até mesmo músicos precisavam prever a exibição das obras no futuro em outros veículos que não apenas as TVs abertas e paga.

A renovação do contrato de Angélica, por volta de 98, foi o divisor de águas que fez a Globo olhar para o futuro de seu conteúdo no longo prazo.

Hoje, ela tem uma tonelada de novelas, séries, shows, musicais, infantis etc. que dificilmente poderá reexibir seja no Globoplay ou na TV paga. 

Isso porque familiares herdeiros de artistas mortos (seja no elenco ou autores de trilhas sonoras) geralmente nunca estão em acordo entre si mesmos, não raro se estapeando nas barras dos tribunais.

O que dizer então de chegarem a um acordo para a reexibição de produções de seus antepassados mortos…

Eu soube que muitos até estão em péssimas condições financeiras, mas a ganância, prepotência e burrice, convenhamos, falam mais alto.  

Outro problema crônico é a qualidade e o insumo presente nas produções do passado.

Quem assistiu ao canal Viva já percebeu que a qualidade de muito conteúdo exibido ali é péssima.

Som com chiados, imagens distorcidas, esticadas, que tornam as produções até grosseiras. 

Bom, isso ocorre porque, com a evolução para o mundo digital, hoje em resoluções como 4K, 8K etcK, as filmagens antigas na dramaturgia ou área de shows (a maioria gravada em Betamax ou em outros formatos com pouca qualidade) ficaram estética e auditivamente obsoletas.

Feed me! Feed me!

Sim, o Globoplay tem um acervo enorme, mas ainda assim é tão limitado quanto o do canal Viva.

Ao mesmo tempo, tem necessidade de investir em novas produções exclusivas para atrair assinantes. Ou seja, não pode nunca mais parar de crescer.

É como um monstrinho esganado cujos pais não podem parar de alimentá-lo, nem que tenham de lhe dar um braço ou uma perna. 

Metaforicamente, o Globoplay é hoje uma espécie de Audrey, a hilária planta do filme “A Loja dos Horrores” ou “A Pequena Loja de Horrores” (a de 1960 com o jovem Jack Nicholson; e com remake em 1987).

Audrey só sabia falar: “Feed me! Feed me!” (“Me alimente! Me alimente!), enquanto crescia descontrolada e alucinadamente.

E comia cada vez mais (humanos) na medida em que ficava mais parruda.

Esse é o paradoxo do streaming. Um gigante insaciável que não pode parar de ser alimentado por investidores e novos assinantes.

O problema é que, até o momento em que escrevo estas mal traçadas linhas, essa conta não fecha.

Ninguém ainda sabe como transformar essa “Audrey tecnológica” em algo lucrativo. Feed me! Feed me!

Ricardo Feltrin é jornalista, colunista e apresentador, tendo trabalhado por 21 anos no Grupo Folha como repórter, editor e secretário de Redação, entre outros cargos

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