HOME Notícias
Uma reflexão com Pe. Airton Freire: "Uma questão ética"


Foto: Reprodução Instagram

Nascido pelo desejo parental e por ele marcado, o sujeito é acometido pela falta, já em sua matriz, o que equivale dizer, o sujeito já nasce barrado($). Nas relações eu-tu, essas que pervadem a ética da alteridade, esses elementos aí estarão e balizarão comportamentos, ações e reações em determinados acontecimentos. A palavra, contudo, vem ajudar a expressar o que o desejo havido, ali presente, qualquer que seja a sua natureza, embora esta nem sempre admitida, possa ser simbolizando. A depender de tua estrutura, saberás administrar o desejo que em ti é constante, porque, enquanto viveres, haverás de desejar. A questão não está em suprir o desejo, em sua matriz, mas em como administrá-lo, pois suprimir o desejo em sua matriz significa morrer com sua negação. Enquanto viveres, serás tão desejante quanto desejado, muito embora, em alguma dessas dimensões, possas ser interceptado.

O desejo, por sua própria característica, nasce sem reconhecer possibilidade de limites, porque surge pelas asas do que contraria o princípio da realidade. O desejo emerge de mãos dadas com o princípio do prazer, o que significa dizer, em sua matriz, que é ilimitado. O ilimitado do prazer, se efetivado, gera o caos. Convívio humano algum, por esse princípio, pode haver. O desconhecimento da lei de interdição de um pelo outro levaria à insensatez do convívio sem limite, a um mundo louco. A realidade põe limites, gera a cultura pela simbolização dos interditos e humaniza as relações humanas, mesmo em conflitos. Portanto, isso (id, es), que é tão imenso, tão desmedido, tão caudaloso, a todo instante pedindo para se realizar, limitado há de ser, porque sempre como ser desejante vais te perceber. Terás de te administrar para poder ter condição de convívio, sem o que as águas para além das margens começariam a transbordar, e aí não dá. Uma ética que desconhece limites próprios e cuja orientação fosse a de fazer (e nisso permanecer!) o que lhe aprouvesse, segundo o seu prazer, seria uma grande distorção dos chamados direitos individuais, inauguraria um relativismo subjetivista, com graves conseqüências para o convívio humano. Como norma de conduta, cada um teria sua própria subjetividade como critério imperativo de verdade.

Na “conquista por espaço”, seria estabelecido um jogo de articulações e domínios de difícil previsão quanto aos resultados. Estaríamos, então, sob o domínio da Totalidade do outro, em sua absoluta e soberana vontade. Nas relações intersubjetivas, essas em que a relação se faça sob o signo de eu-coisa, não há espaço para que tu sejas desejante, mas apenas desejado. Nela, se o outro negasse o teu desejo e quisesse desejar por ti, em ti e para ti, a relação aí deixaria de ser de alteridade; a relação seria uma relação de trazer o outro para sua totalidade. Tu te lembras da história de uma criança que viu um pequeno pintinho e ficou tão encantado pelo pequeno animal, que o pegou na mão e disse “é meu”. E apertou-o para que ninguém o pudesse tomar, ninguém pudesse tirá-lo, para que, a qualquer momento, pudesse dispor do pequeno animal que estaria à sua mão. Pelo desejo de não sentir solidão, mais apertava o animalzinho à sua mão, para que mais junto dele pudesse estar e, quanto mais assim procedia, dizia: “mais eu o consigo amar”. Ao abrir, um dia, a mão, para permitir que somente por seus olhos pudesse ser o animalzinho olhado, viu queele estava morto, sufocado; sem espaço algum para se mover nem para desejar. A relação entre o desejo e a sua realização coloca em questão uma ética que nós chamamos a ética da alteridade ou ética da inclusividade.

A ética da alteridade consiste em respeitar o outro na sua diferença, matriz que é de toda tomada de consciência (somos semelhantes em nossas diferenças). O que de mim o outro difere pode perceber da realidade o que eu não posso ver. Essa diferença poderá também me enriquecer ou me tolher, a depender de como com isso eu possa lidar. Quando isso concerne às relações humanas, torna-se, sobretudo, especialmente, difícil o trato com os mais próximos. Elementos dos quais nem sempre se tem ciência tornam-se presentes, e, com ou semintento, leituras, releituras, rasuras, adulterações e obliterações, tanto em novos quanto em antigos textos, em renovados contextos, serão pretextos para que, entre sujeitos, de indevidos e mais vividos jeitos, comece a ser percebido, em nova leitura de seus próprios acontecidos, o que, até então, não se consegue enxergar, malgrado se possa ver. Há ainda outros dados. O que surge ilimitado é o princípio do prazer. O que põe limite é o princípio da realidade. O princípio do prazer gera o caos, se efetivado; o princípio da realidade gera a cultura. O que nasce ilimitado precisa ser margeado, barrado. O sujeito há de ser barrado, no limite do seu desejo, quando, de forma ilimitada, busca ser realizado. Há de ser barrado; do contrário, tornar-se-á impossível o convívio humano. De onde vêm a cultura, a música, a poesia, a arte, as representações de forma escrita, cantada e musicada, senão pela simbolização do que não pôde, em sua matriz, ser realizado?

Só existem três destinos para o desejo humano: ou ele se realiza, ou ele se recalca, ou ele se sublima. Se tu realizares o teu desejo, tens que saber que, na realização, existem questões de ordem ética e moral que também haverão de balizá-lo. Se tu o recalcas, ficarás frustrado, e o que vem pela via do recalque tem o nome de neurose. Se tu o sublimas, encontras a satisfação (realização) por um fim substitutivo, o que responde pelas formas múltiplas de elaborações na arte, cultura, música... A depender da forma como tu resolves o desejo, que em ti é constante e estrutural, vai resultar numa personalidade equilibrada ou em algum ponto destoante e destoada, como rios que transbordam para além das margens. Essas condições de natureza psicológica estão presentes nas relações interpessoais e, portanto, na ética da alteridade.

Por Pe. Airton Freire

PUBLICIDADE